AMAZON TOWN 

Em 1948, o antropólogo Charles Wagley realizou uma viagem para a cidade de Gurupá, na Ilha do Marajó, onde encontrou DALCÍDIO JURANDIR e escreveu o livro Amazon Town

por Mário Santos Neto











Entre junho e setembro de 1948, o antropólogo norte-americano Charles Walter Wagley (1913-1991) complementou a coleta de dados iniciada em 1942, e ampliada em 1945, que culminaram no livro Amazon town. A study of man in the tropics (1953). Na visita à comunidade amazônica de Gurupá (PA), em 1945, o antropólogo contou com o apoio do escritor Dalcídio Jurandir (1909-1979), que colaborou na pesquisa e inclusive, segundo Moacir Werneck de Castro, “o ajudou escolher a pequena cidade paraense de Gurupá – onde, aos vinte anos fora secretário do prefeito” (2006: 200). Essa estadia de Dalcídio na comunidade ocorreu em 1929, quando foi nomeado Secretário-Tesoureiro da prefeitura do município por seu amigo, o “Intendente”, Rainero Maroja. Foi nesse curto período que aí ficou (outubro de 1929 a novembro de 1930) que o então jovem escritor esboçou o primeiro romance de seu futuro projeto literário: a série Extremo Norte, um conjunto romanesco constituído por dez volumes, que narram a trajetória do jovem Alfredo, compondo um vasto panorama social, cultural e histórico da Amazônia – conjunto mais tarde chamado de “Saga do Extremo Norte” por Jorge Amado (1996: 17). Essa “saga” acompanha o percurso do personagem desde a infância, por volta dos dez anos, passada no Marajó (Cachoeira do Arari e Ponta de Pedras), até à maturidade, aos vinte. O último romance da série, Ribanceira, narra a experiência de Alfredo como Secretário-Tesoureiro em uma cidade situada à beira do rio Amazonas – repetindo ficcionalmente a biografia do escritor.

“A igrejinha, branca e luminosa... com uma penugem de garça velha”.



No auge da Segunda Guerra Mundial ocorria um processo novo de aproximação entre EUA e Brasil. Os norteamericanos estavam interessados em matérias primas importantes no Brasil, borracha na Amazônia e mica e quartzo no Vale do Rio Doce. Daí, relata Moacir Werneck, “elaboraram um programa de assistência médica e sobretudo de saenamento básico para marcar presença” (2006: 201). O antropólogo Charles Wagley, após um rápida pesquisa de campo em terras indígenas, em 1942, assumiu a Divisão do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), programa surgido da parceria entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos para “fornecer assistência médica aos produtores de matérias-primas estratégicas”, entre estes, os seringueiros do Vale Amazônico (Wagley, 1988: 19-20). Nessa ocasião, o antropólogo contou com a ajuda de Dalcídio Jurandir, que com “seu profundo conhecimento da vida da cidade e o grande círculo de amigos” tornou possível que ele, Wagley, aprendesse mais sobre Gurupá “em um mês, do que o teria conseguido em dois meses” sem o auxílio do escritor (Wagley, 1988: 21). Dessa experiência Charles Wagley acumulou dados que o ajudaram a compor o livro Amazon town. A study of man in the tropics, “estudo de caso” realizado em Gurupá entre junho e setembro de 1948. A tradução brasileira desse livro, Uma comunidade amazônica. Estudo do homem nos trópicos, realizada por Clotilde da Silva Costa, foi publicada em 1956 – a 3ª edição, de 1988, conta com um novo prefácio de Charles Wagley e um posfácio escrito por Darrel Miller, aluno do antropólogo.

Uma comunidade amazônica apresenta oito capítulos. No primeiro, “o problema do homem dos trópicos” [ilustração], o antropólogo norte-americano tenta responder a questões relativas ao desenvolvimento de uma região “atrasada”, analisando vários aspectos, do clima à economia. O segundo capítulo, “uma comunidade amazônica”, faz uma descrição da cultura de Itá (nome fictício de Gurupá no estudo antropológico), encarada como produto da fusão entre as culturas europeia, negra e indígena. O terceiro capítulo, “o meio de vida nos trópicos”, trata da organização econômica da comunidade de Itá e descreve, por exemplo, a pesca e a extração da borracha com seu “sistema do aviamento”. O quarto capítulo, “as relações sociais em uma comunidade amazônica”, tematiza a estratificação social em Itá, descrevendo como os habitantes da comunidade se classificam quanto a sua classe social (“gente de primeira”, “gente de segunda”), como ocorre a mobilidade social, etc. O quinto capítulo, “os assuntos de família de uma comunidade amazônica”, aborda a família e as relações de compadrio como estratégia para alargar o círculo de relações pessoais. O sexto capítulo, “a gente de Itá também se diverte” descreve as festas religiosas. No sétimo capítulo, “da magia à ciência”, Wagley narra o choque entre as práticas da medicina científica e da medicina popular. E para concluir o livro, o oitavo capítulo, “uma comunidade de uma área subdesenvolvida”, reforça as teses contidas em todo o livro comparando a comunidade de Itá com a pequena cidade de Plainville (EUA). Nessa comparação, o pesquisador afirma que Itá é a mais atrasada, na maioria dos aspectos analisados, entre as duas comunidades. Segundo ele, o motivo pelo qual a região amazônica é atrasada reside na cultura e na sociedade, e que só com uma reforma cultural e a chegada da técnica é possível desenvolver a região.
As “notas de campo” do pesquisador, feitas durante a pesquisa por toda a equipe que ele liderou, nos possibilitou, entre outras coisas, observar a semelhança, em parte, dos processos de levantamento de dados realizados tanto pelo escritor no contexto do seu projeto literário quanto pelo antropólogo; e nos ajudou também a estabelecer algumas convergências entre o romance e o estudo antropológico, abordando aspectos da vida social e histórica da comunidade amazônica de Gurupá. A partir disso, observamos melhor o diálogo entre as duas obras, e ampliamos assim a reflexão sobre a transposição ficcional feita por Dalcídio, no romance, baseado na própria vivência na comunidade e nos dados coletados por Wagley. Além disso, alguns desses dados dialogam com os dados que levantamos quando realizamos, em fevereiro de 2012, a visita de campo na comunidade. A convergência que estabelecemos, nesse primeiro momento, entre as duas obras, se detém especificamente na relação entre alguns aspectos da comunidade referidos pelo romance que são tratados no estudo antropológico, e encontram testemunhos nas “notas de campo” do pesquisador – apesar de algumas dessas “notas” não terem sido utilizadas no livro.
Nas fichas de pesquisa de Charles Wagley encontramos o nome verdadeiro de alguns comerciantes importantes da localidade, dentre os quais destacamos os nomes de Liberato Borralho e Samuel Castiel, que provavelmente serviram de base para a criação dos referidos personagens do romance Ribanceira. Tanto a família Borralho quanto a família Castiel (que é judia, assim como a família Bensabá no romance), foram muito referidas quando, na visita de campo, em Gurupá, realizamos uma entrevista com Adelino Freitas, historiador e morador antigo da comunidade. A possibilidade de consultar as “notas de campo” da pesquisa do antropólogo foi importante para analisar o processo pelo qual o pesquisador protege seus informantes, em seu livro: ele cria nomes fictícios para cada um deles, cujo “efeito simbólico seria o de despertar a confiança dos habitantes e dos informantes na e da comunidade” (Francisco Rosa, 1993: 50). A característica principal desses nomes é a proximidade sonora com o nome verdadeiro. Em Uma comunidade amazônica, o comerciante Liberato Borralho, por exemplo, é referido como Lobato; a zeladora da igreja de Santo Antônio, D. Inacinha, é, no estudo, a D. Branquinha; e assim por diante. Em Ribanceira, essas duas figuras históricas aparecem, respectivamente, como o Seu Guerreiro, o “Não-me-Meto-em-Política”, e na D. Pequenina, a “Mata-Marido”, viúva várias vezes, assim como D. Inacinha, que declara em uma das fichas de pesquisa do antropólogo que “não é nada agradável fazer enterro de marido”.
Alguns depoimentos colhidos pela equipe de Charles Wagley evocam, de imediato, trechos do romance. Em um ficha consta o depoimento de uma moradora local que expressa o clima decadentista da época. Nas palavras de D. Felícia “Gurupá está agora [em 1948] muito decadente, já foi um lugar, tinha luz, telégrafo.” Na caminhada aos cemitérios, no início do romance, o “guia” de Alfredo, Intendente Dr. Januário, também refere o desamparo da comunidade:



— O entulho nos engole. Venho administrar o outrora, o que já foi. E cidade foi, sim, com hotel, piano, harpa, banda de música, coche fúnebre, jornal, biblioteca, advogados e um Trapiche-cais. Os santos fugiram, alega aquele bêbedo lá da raiz de mangueira. Santo Antônio e São Benedito são só fantasmas. Desmente o Coletor Federal, o Sede de Justiça: Quem daqui saiu no Lobão,com as imagens num saco de borracha, senão o Meritíssimo? Mas me servindo um cálice de Porto, afiança o seu Guerreiro: Não, o Juiz não, foi o ex-Intendente. Fazendo acordo com o Diabo, destelhou a igreja para cobrir com as telhas sa-gradas a casa do filho no Jocojó. O filho torrou as imagens em Belém, trocou uma a bordo por um pacote de quinino (Ribanceira = R: 35-36).
Em um diálogo constante, esse trecho evoca, ainda, outros dados da pesquisa antropológica. Além do desamparo por conta da situação de declínio econômico experimentado após o auge do “ciclo da borracha”, o personagem romanesco se refere também aos “causos” envolvendo os dois santos da cidade. Na comunidade de Gurupá, ainda hoje, como pudemos observar na visita de campo, Santo Antônio e São Benedito, convivem juntos na igreja de Santo Antônio. [ilustração] Charles Wagley, no seu livro, se refere à lenda do edifício da prefeitura, que, nas palavras do antropólogo, “deveria ter dois andares e uma escada majestosa descendo do segundo andar até à praça pública, defronte do rio Amazonas”, mas por volta de 1912, não foi acabado então porque o prefeito havia desapropriado para a prefeitura o material de construção que vinha sendo acumulado para erigir a igreja de São Benedito, de quem a população de Itá se tinha tornado profundamente devota. “O santo pôs uma maldição no prédio”, dizem ainda hoje os moradores da cidade (Uma comunidade amazônica = UCA: 69).
No romance, a mesma lenda aparece, agora dentro da coerência do enredo, no mesmo trecho em que o Intendente está acompanhando Alfredo na “vistoria aos cemitérios”, destacando também a “escada majestosa”:


Aqui, do que seria o Palacete Municipal, só foi armado o esqueleto. Olhe a escada para o segundo andar. A obra parou no mesmo ano em que desceram aqueles preços. O ex-Intendente passou no cobre os materiais da construção. Mas entre o povo corre que foi arte de São Benedito. Os materiais pertenciam ao santo para a sua igreja que nunca saiu da pedra fundamental. Foram requisitados pelo Intendente para a obra do palacete. Zangou-se o santo. Consta que São Benedito anda farto de morar em casa alheia, a casa é do Santo Antônio. Mas agora não tem remédio. Os dois santos se tolerem secula seculorum debaixo do mesmo telhado (R: 33).

A obra antropológica e a obra literária continuam o diálogo no que se refere às histórias sobre os santos que “corriam” na comunidade na época em que, tanto o escritor quanto o pesquisador, lá estiveram. Na página 36 de Ribanceira, os dois santos são referidos como “fantasmas”; em Uma comunidade amazônica, um trecho relata duas narrativas que aparecem no romance:
Cada santo é considerado uma divindade local. Santo Antônio e São Benedito, cujas imagens ocupam o altar-mor da igreja matriz, chegaram mesmo a ser vistos à noite caminhando pelas ruas. O pai de Juca contou-lhe ter avistado os dois santos passeando certa noite sob as mangueiras da rua principal; usavam hábitos de monge e dirigiam-se à igreja, onde os viu entrar [...] Em outra ocasião, um soldado viu dois homens caminhando pela rua, altas horas da noite, e como não atendessem à sua ordem de alto, fez fogo. Ambos continuaram caminho e ele os reconheceu como os dois santos, tendo o zelador da igreja no dia seguinte encontrado um orifício produzido por bala na imagem de Santo Antônio (UCA: 221).
No romance, a lenda do “baleado Santo Antônio”, que por isso está “perdendo sangue” (ao longo do romance essa é a referência principal ao santo), aparece em uma conversa entre Alfredo e Bi, quando estão em busca dos músicos para o baile de D. Benigna:
Pisavam no chão de pedras, varre o rei, varre a rainha, lá embaixo o baque dos cedros na praia.
Cismo que esta hora é a folga daqueles dois — fala Bi com voz resignada.
— Que dois? O rio e a noite?
— Santo Antônio e São Benedito saírem juntos para tomar fresco.
— Se livrarem um pouco do cheiro da santidade e dos morcegos?
— Os dois costumam sair, sim, o branco e o preto. Mas agora, não, ah, nem me lembrava! São Benedito anda em tiração de esmolas. Vem das Ilhas, cobrando óbolos.
— Óbolo ao Papa?
— Ao Papa? Sabe que Santo Antônio foi, uma noite, alvejado? Levou uma bala lá nele que até hoje traz a marca. Foi numa das suas saídas de noite.
— Por isso perde sangue? (R: 140)
Para o autor de Ribanceira, “a ficção é mais verossímil quanto mais inventada tendo como base a realidade” (D.Jurandir, 2006: 52), e por isso seu processo de criação envolvia muitas viagens, pesquisas, coleta de material, e uma reflexão constante a respeito da técnica composicional do romance – seus grandes mestres neste campo foram Flaubert e Tolstói. Seus colaboradores mais ativos nessa recolha de dados eram seus irmãos, Ritacínio e Flaviano, a quem pedia coisas como mapa de rios, cidades, dados históricos sobre algumas cidades (Ponta de Pedras e Belém, principalmente), detalhes sobre determinadas profissões, etc., que o romancista “preenchia [em] vários cadernos com anotações diversas, como ditos e crendices populares, citações de autores clássicos, lendas, etc.” (B.Nunes et al., 2006: 165). Tudo isso demonstra o grau de consciência e cuidado que Dalcídio Jurandir tinha com a composição de seus romances, os sacrifícios que lhe exigiam e ainda as dificuldades que enfrentava, como, por exemplo, a distância, o escritor longe, no Rio de Janeiro, e os irmãos e amigos em Belém.
Nesse ponto, observando o processo de levantamento de dados realizado pelo romancista, percebemos o quanto se assemelha, em parte, ao levantamento realizado pelo antropólogo. Como comprovação disso, cabe citar o fato de termos encontrado, em meio às “notas de campo” do pesquisador, uma quadra popular do município, coletada em 1948, não utilizada no estudo antropológico, que figura em Ribanceira. A quadra que diz: “Tigre preto, Tigre branco/ Que vem nas ondas do mar/ Tigre preto, Tigre branco/ Já tornou sabiá” aparece quando Alfredo volta de sua experiência frustrada no Rio, e logo em seguida vai visitar sua madrinha, Magá, no ponto de venda de tacacá, e da boca dela ouve parte da quadra anotada por Charles Wagley:
Com três cuias de tacacá, bem pimenta, um camarão e jambu, regalou-se, fazendo render a goma para pedir mais tucupi. Magá servia aos fregueses, cantarolando:

Tigre preto
Tigre branco
Que vem nas ondas do mar

Beiço a tremer da folha do jambu, Alfredo ouvia e isso era reaver o nome, o conhecer-se de novo, o restituir-se ao chão (R: 12).
Esse trecho aponta que Dalcídio Jurandir e Charles Wagley coletaram cada um por seu turno, a mesma quadra popular. A não ser que tenha havido uma colaboração do romancista nessa tarefa, no caso, fazendo parte da equipe de pesquisa do antropólogo (o que certamente não deixaria de ser referido no prefácio do livro deste) é pouco provável que o escritor tenha acessado o material dos antropólogos. Concluímos, então, que era o seu processo de levantamento de dados para a criação romanesca que se assemelhava ao mesmo processo dos antropólogos.
Os pontos de contato entre Uma comunidade amazônica e Ribanceira se referem a vários outros aspectos da comunidade de Gurupá. A convergência que propomos agora se detém sobre o espaço real de Itá/Gurupá e o espaço ficcional da “ribanceira”, além da relação entre alguns informantes do antropólogo e alguns personagens relevantes da trama do romance, como o Seu Guerreiro e o Seu Bensabá, comerciantes locais que de fato existiram e estão presentes na ficção. A descrição da cidade no romance, por exemplo, vai ao encontro em muitos pontos da descrição feita por Charles Wagley, diferindo apenas a maneira pela qual essa descrição é feita. No estudo antropológico a cidade aparece descrita de uma maneira seca, informativa, destituída de efeitos estilísticos, característica do texto objetivo, científico:
Vista do rio, a cidade é uma pausa repousante na monótona sucessão de matas que cobrem as margens do Amazonas. Destaca-se, nítida e colorida, do fundo verde-escuro da vegetação. A igrejinha, branca e luminosa, com o seu telhado cor de barro, é o primeiro edifício que se distingue (UCA: 45; grifo nosso).
Itá apresenta ao rio o seu melhor perfil, mas, vista de perto, até a sua orla fluvial está estragada pelo uso (UCA: 46).

Por outro lado, no romance a descrição da “ribanceira” aparece transfigurada pela linguagem poética, que personifica a cidade fazendo-a assumir comportamentos humanos (timidez), por não “querer” revelar sua pobreza à primeira vista; no trecho a seguir, o ponto de vista em primeira pessoa flagra a cidade “saindo do seu ouriço, se pondo de cócoras”. Vejamos:
Mas a cidade? Ainda encaramujada na ribanceira. Reserva-se, quer nos pegar de surpresa, tapando nossos olhos com suas mangueiras ou mostrar-se, telha por telha, retraída nas paredes, preguiçosa de se levantar. Do barranco, que se empinou na várzea, a testa é sabrecada, endurecida, nos coices do rio, agora aqui e ali pendura suas folhagens. Em pedra se assenta o terreiro com um sobejo de almas, aí foi um hospício, fortim, uma cidade? Breve estou naquele moquém debaixo deste algodoado azul, o sol esfolando o rio. Onde os abacateiros? Quando a minha febre? Te desencaramuja, cidade, ou que foi, mais não é, suspende teus jiraus, solta teus morcegos, teus galos, teu cancan os teus podres.
Agora a igreja com uma penugem de garça velha, cidade saindo do seu ouriço, se pondo de cócoras (R: 9-10; grifo nosso).
Esse trecho denuncia além das características da prosa poética de Dalcídio Jurandir, a estrutura da narrativa complexa da obra, particularmente, nesse caso, o jogo entre a descrição física e a descrição psicológica: “Onde os abacateiros? Quando a minha febre?” Outra diferença se refere à estrutura frasal nas duas obras: em Uma comunidade amazônica os períodos são curtos, marcados geralmente por orações coordenadas, e a pontuação, padrão, respeita os preceitos gramaticais. Em Ribanceira as frases são longas, cheias de imagens, metáforas, expressões idiomáticas, as palavras usadas ou são pouco comuns (“sabrecada”) ou são neologismos (“encaramujada”), e a pontuação é livre.
Apesar da existência de vários pontos de contato entre o romance e estudo antropológico, o que sugere até uma relação de “influência” de um em relação ao outro, a maneira como cada um representa a mesma comunidade amazônica é diversa. À diferença do gênero textual correspondem, naturalmente, duas representações sobre a vida social da comunidade de Gurupá: uma “científica”, outra literária; um texto é descritivo-dissertativo, enquanto outro predominantemente narrativo-ficcional. O texto literário diverge, em várias características, do texto científico. Primeiramente porque, segundo o estudioso da estrutura da linguagem poética, Jean Cohen, “toda linguagem literária é estilizada” (1976: 100). Em se tratando de um romance de Dalcídio Jurandir, as características mais marcantes são justamente sua prosa poética e a estrutura complexa da narrativa.
Após a apresentação e comparação das obras de Dalcídio Jurandir e Charles Wagley, podemos concluir que o romance e o estudo antropológico tratam, obviamente, do mesmo espaço urbano-regional (Itá/Gurupá/Ribanceira), pelas descrições da cidade e da vida social no interior de cada obra. Como vimos, as representações contidas em cada obra estão ligadas ao estatuto textual. O estatuto científico do texto do antropólogo prevê a argumentação em defesa de uma tese (o “atraso” da região amazônica) e a proposição de uma solução (reforma cultural); o estatuto literário do texto do romancista, por sua vez, questiona ao invés de afirmar, e seu discurso metafórico abre, diante do leitor, um horizonte de significações. Os discursos científico e literário acabam sendo duas maneiras de encontrar “respostas” para os problemas da região. Charles Wagley, como o personagem do romance, acaba desiludido também, ao ver as mudanças pelas quais a Amazônia passou com a “chegada da técnica” (os “grandes projetos” na Amazônia no período da ditadura militar); Alfredo, apesar de desiludido, “de tudo que lhe cortava o peito fez uma alegria” (R: 11).

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