KINEMANDARA: O PONTO DE MISTÉRIO DO CINEMA BRASILEIRO por Carlos Pará



 

30 ANOS DE CINEMA DO INVISÍVEL -  

"- Nossa História só terá realidade quando o nosso Imaginário a refizer, a nosso favor . VFC - Manifesto Curau.

"- Agora, abrir os olhos. Agora, começar a sonhar o sonho de ver como somos vistos". VFC : "Tarkovsky: Através de uma fina película transparente".

"Existem mais coisas entre nós e a realidade do que os nossos olhos podem pensar" VFC
 
V icente Franz Cecim


Volta a ter sua produção cinematográfica exibida na cidade.   " KinemAndara: 30 anos de Cinema do Invisível." curtas-metragens poéticos produzidos em Belém na década de 70 em super-8 mm. Os filmes foram, pela ordem de realização: 'Matadouro(1975),Permanência (1976), Sombras(1977), 'Malditos Mendigos(1978)' e 'Rumores(1979)', que eram projetados em cineclubes, garagens, auditórios, passava em qualquer lugar, onde desse para ligar o projetor, armar a tela, mandava ver. Os anos de 1975 até 1980 apesar de ser um caminho exaustivo de Cinema e Loucura para VFC, foi principalmente, um ritual sagrado, solitário, existencial e essencial. Enquanto as fábricas de filmes estimulavam o consumo de máquinas de filmar para registrar "os momentos felizes da sua vida", batizado, casamentos, aniversários, piqueniques, passeios, Cecim utilizava sua Câmera como um meio de interrogar, espreitar as aparências da realidade e ir até as últimas conseqüências com seu roteiro que era abandonado logo no começo das gravações, pois nada do que tinha sido filmado obedecia ao que tinha sido escrito, captava a realidade em frames fora ou além da ótica estabelecida como beleza e como verdade, " espelhos de mistérios, revelando outros mistérios",  poemas visuais em Super-8, Cinema com um custo relativamente barato. As principais dificuldades de se fazer Cinema na época são as mesmas de hoje: falta de dinheiro e a insensibilidade para criar, imaginar e ser.
 


Cada rolo tinha três minutos de gravação e na hora de editar aproveitava por completo as filmagens e tudo ia pro filme, não perdia nada na seleção e organização das imagens, já sabia o que queria, quando colocava a Câmera, já sabia o que ia fazer, dessa forma acreditava e fazia os filmes, como tudo é miragem,  tinha miragens, tanto as recordações, projeções e especulações sobre o futuro, quanto miragens do presente, miragens imediatas. Se não fosse uma miragem não havia a poética, então, porque fazia arte? Por que não só viver, ouvir, ver, se conformar com tudo o que está pronto e condicionado para nós vivermos. É preciso recriar, ver a realidade através de uma fina película transparente? Colocar uma fina película entre o olhar e a realidade.   VFC concretizava seus sonhos que hoje possuem um grande valor artístico e documental. Na época o material que utilizava era uma pequena máquina de super-8 com filmes da Kodak, depois de filmar, enviava para revelar em São Paulo através do Foto Keuffer, e depois voltava, pronto para serem exibidos. Depois que parou de fazer seus filmes, p or uma questão de princípios, deu todo seu equipamento. Tinha decidido dedicar-se unicamente a um novo Caminho "VIAJAR A ANDARA", determinou fazer uma coisa só, para avançar, ir mais fundo na sua Existência, pois havia a Intuição que um novo caminho devia ser seguido, o Caminho da Escritura. A partir de 1979, ano que realizou do seu último filme "RUMORES", escreveu e publicou o seu primeiro livro "A asa e a serpente", primeiro passo do seu Projeto de "Andara - O livro invisível". E assim se impôs a Literatura como um ritual único. Seus filmes têm muito da Literatura pelo poético, e seus livros têm muito do Cinema, pelo visual. Não fazer filmes foi uma escolha radical e com isso deixou esquecidos seus trabalhos e levava-os consigo como o inconsciente que de quando em vez se manifesta. Atualmente os pequenos rolos de filmes em super-8 se encontravam dentro de seu Caos onde mora, serenos, perdidos dentro de um saco de plástico com a boca amarrada debaixo duma televisão que nunca é ligada, onde por ocasião desta Mostra realizado pela Revista PZZ nos dias 17 e 18 de Março no Cine Líbero Luxardo em parceria com o Governo do Estado do Pará através da Secretaria de Cultura e do MIS-PA, resolveu guardar no Museu da Imagem e do Som – Pará, para preservá-los. Em 2005 os filmes voltaram a ser exibidos, no formato digital, em Belém e em São Paulo, incentivado pelo Projeto de resgate dos resíduos, dos raros vestígios do Cinema paraense, desenvolvido pela Universidade Federal do Pará, em parceria com o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPQ.
Os filmes foram restaurados e adaptados à tecnologia digital, um processo de filmagem da projeção dos filmes e digitalizados para DVD, assim, puderam garantir a salvaguarda do conteúdo e da sua informação histórica, pois seus filmes mostram aspectos da realidade de Belém em outras épocas e dos esquecidos em sua ótica visionária poética numa trilha sonora emocionante. 
Os filmes dialogam com o invisível que não podemos ver. Não é cinema mudo nem falado, é uma organização intuitiva de imagens, silêncio e música  que se compõe num mosaico onírico. O cinema sempre fala como linguagem para dialogar, transmitir a emoção, a miração, a migração, o ato de olhar do autor. "Kinema = Movimento, Andara = Andar= Amazônia, Kinam Andara, revela imagens que não se vêem habitualmente, a imagem da morte, a imagem dos esquecidos, a imagem da velhice, a imagem da transitoriedade das coisas, a imagem interior, o silêncio e o vazio são povoados de alucinações e significados. Fazer filme não com o olho que vê ou o olho mecânico da máquina que filma, fazer com o desespero e com a alma, louco, apaixonado a filmar,  a iluminar, a editar, sonorizar, incansável no seu ofício mágico e alquímico, solitário em seu ritual sagrado, existencial-essencial, pessoal-impessoal, para expressar a matéria-prima da vida, alguma coisa brutal noutro sentido figurado, para as pessoas se tocarem.   Mostrar a realidade bruta trans-figurada, experimentar, recriar cenários. O cinema trabalha com a matéria-prima pré-existente,  a libertar o sentido das coisas, criando um mundo inteiro com as imagens diferentes do que são usadas, faz entrar num espelho energético e voltar desconhecido, diferente do que era antes, com aparências de realidade e o Cinema não depende só da realidade para existir, entrar num espelho de mistérios e ver-se como mistério é o que VFC queria mostrar,  queria olhar, ver-se, na vida, na tela, até conseguir captar a dimensão oculta na realidade visível. E por isso Kinem A ndara é o Cinema do In-visível.


Existe um rico Universo imagético com raízes na memória do homem moderno, mas que este não tem acesso, permanecendo oculta ou ignorada, sua fonte original de criação, que se encontra invisível aos olhos e insensível ao coração, não pertencendo ao universo da percepção profunda da noção de realidade que regem nossa compreensão do mundo e de nós próprios. Todas as coisas que acontecem na Consciência se refletem a partir duma visão-vivência que renova memórias, o que está em baixo (inconsciente-passado) assemelha-se ao que está em cima (vivência). Uma linguagem de grande riqueza imagética pelo recurso da poética, dos momentos de iluminação, da fotografia e do movimento das cenas com alegorias fantasmagóricas, e aos jogos de imagens na busca pelo elemento de mistério das coisas, re-vela o Kinem Andara.

V icente C ecim faz parte das Vozes que se insurgem contra a mediocridade e ao modo de produção mercadológico que se transformou o Cinema, revela a coragem e a vontade em utilizar para benefício próprio as técnicas de Comunicação contra o niilismo e as concessões que o cenário audiovisual se define e se resolve em expressões obscuras.
Sempre que falamos abertamente não falamos nada, sempre que usamos uma linguagem que recorremos às imagens, ocultamos a verdade. E tudo o que dissermos duma Obra de Arte será insufi[ciente ou inútil.  Diferente é a experiência de nos iniciarmos diretamente em seus filmes.

"Quando sós, face a face com eles, sempre nos falam com ampla generosidade, se entregando profundamente, em retribuição ao nosso silêncio . Respeito e prudência, ao falarmos deles, então se impõem. Deixar que eles se digam. E, previamente, apenas deles falar por alusões.
 


Esse est percipi/ Ser é ser percebido – nos diz Berkeley.                                           E quando o olho humano vem fazer companhia a esse Olho mecânico, vem humanizá-lo, digamos assim, no sentido pleno  das visões, intuições, carências, indagações, ilusões, possíveis saberes,  esperanças, miragens, que fazem dele um olho humano?                               
Esse est percipere / Ser é perceber -  nos diz Berkeley.
 "Um filme de Vicente Cecim sendo então uma dessas raras oportunidades que nos são dadas pela Via Estética de confrontar - no sentido já dissimulado pelo uso mais ainda vivo na palavra, de colocar frente a frente - vida e homem, o percipi e o percipere , o percebido e o perceber. (A imagem e o olhar).
Bergson nos diz: Se 'percipi' é passividade pura, o 'percipere' é pura atividade.
A fina película então é o elemento intermediador entre a epiderme do Real, que se entrega a Cecim em percipi , se deixando ser percebida, e lhe permite o ato de percipere , perceber e, o por ele percebido, nos revelar.
Mas, a esta altura, ainda estamos falando da fina película que é um filme, ou imperceptivelmente já ingressamos no coração obscuro do nosso assunto: já nos surpreendemos falando da matéria como uma fina película transparente situada entre o homem e Deus?
A ambivalência das palavras, ah: tanto nos naufragam como nos socorrem.
E o que leremos a seguir, ao lermos a palavra doutrina , seja lido como sinônimo da palavra vida .

Pois é implicitamente a ela, como visão de mundo de Berkeley, que Bergson se refere, quando nos diz: Dela nos aproximaremos se pudermos atingir a imagem mediadora (...) - uma imagem que é quase matéria, pois se deixa ainda ver, e quase espírito, pois não se deixa tocar – fantasma que nos ronda enquanto damos voltas em torno da doutrina e ao qual é necessário que nos dirijamos para obter o signo decisivo, a indicação da atitude a tomar e do ponto para onde olhar.
É permitido ao homem, através da mediação da Arte, não somente percipere/perceber mas também dar a perceber aos outros homens o que, através da fina película transparente, percebeu?
No cinema, em todas as épocas, a alguns, isso foi consentido: Bresson, Ozu, Antonioni, Dreyer, mais recentemente a Alexander Sacha Sokurov, Tarkosky e ao próprio Cecim.
 "Diante do Abismo que é o Assombro de existirmos, humanos, face a face com a espessura e as transparências da Vida que nos habita e na qual habitamos, sutis como uma sombra, densos como um corpo, deveu ser grato a eles, pela vertigem que em nós sempre despertam, pelas quedas para o alto em que sempre nos precipitam, nos impedindo de adormecer na desoladora fronteira que inventamos para nossas omissões, no passo que não damos, entre o Imanente e o Transcendente."
Tarkovsky entendeu o Cinema como a arte de Esculpir o Tempo .
E no livro que escreveu com esse título, e não apenas através das imagens dos seus filmes, nos fala de uma urgência alarmante: - O homem moderno não quer fazer nenhum sacrifício, muito embora a verdadeira afirmação do eu só possa se expressar no sacrifício. Aos poucos vamos nos esquecendo disso, e, inevitavelmente, perdemos ao mesmo tempo todo o sentido da nossa vocação humana.
Que vocação é essa?
A vocação de uma entrega total, de um consentir permanente que luzes lampejem em nós, nos permitindo ver - mesmo que por breves clarões, na vida como numa escura sala de projeções, sacrificando nossas consolações vazias, nossas paixões condenadas a cinzas, nossa avidez de um agora efêmero – aquela que ama ocultar-se e que, em seu Pudor, é a Fonte
Permanente do nosso mais intenso fascínio?
Clarões.
Ainda que estonteantes, cegantes. Mas de uma cegueira que nos liberte de continuar vendo através de um cristal escuro e nos conceda outros olhos capazes de ver através dessa fina película transparente situada entre o homem e Deus - sabemos o que essa Palavra significa, em todas as suas metamorfoses.
É esse o olhar que reivindicava Berkeley, segundo Bergson.
E esse é o olhar que buscou Franz Cecim, com seus filmes que são fendas abertas na espessura da matéria, e que ele, também, reivindica como Tarkovsky, quando afirma:
- E o que são os momentos de iluminação, se não percepções instantâneas da verdade?
Ou quando denuncia:
- A moderna cultura de massas (...) está mutilando as almas das pessoas, criando barreiras entre o homem e as questões fundamentais da sua existência, entre o homem e a consciência de si próprio enquanto ser espiritual.
São palavras que devemos manter acesas em nós quando as luzes
se apagarem e os filmes começarem a cintilar para os nossos olhos.

Nesses Templos de um tempo sem templos em que podem se transformar as salas de projeções, ante filmes como os de Cecim, já não se trata de simplesmente ver, mas de penetrar profundamente, através da fina película transparente que o seu cinema nos oferece, até nos revelarmos a nós mesmos, e orando em silêncio:
- Agora, abrir os olhos. Agora, começar a sonhar o sonho de ver como somos."


A alusão aqui acima é ao texto de Vicente Cecim "Tarkovsky: Através de uma fina película transparente", que nos remete à própria idéia central do pensamento de Vicente . E assim, passo a passo, nos damos conta que foi dito, algo sobre o cinema de Vicente Cecim, ele próprio por ele próprio, mas obliquamente: por reflexos de vozes ecoando em espelhos que constroem sua Imagem em Movimento.

Quem inadvertidamente, penetrar neste campo semiótico, depara de súbito com um sistema caótico de referências, com uma rede de códigos e normas, de nomes e de símbolos relativos a substancias arcanas (segredos, mistérios) em permanente mutação, em que aquilo que é aparente, pode ter sempre um significado diferente do que aparenta-ser e a noção de que a projeção dos fenômenos oníricos não podem ser manipulável a não ser por alusões.

Para Marcelo Ariel que viu os filmes de Cecim na PUC de São Paulo em Abril de 2005, fala na Revista Critério que " são filmes que transfiguram o sentido das imagens e se inserem como 'documentários do fantasmagórico' incrustado em nossa 'ficção-vida' 9 ela mesma um sonho onde sonhamos que não sonhamos como nos lembra Borges). (...) Cecim é um criador radical que trabalha entranhado entre o ser e o não-ser evitando separar os dois do sagrado porque ele em sua obra sobrevoa dualidades que se dissolvem num estado poético acessível a qualquer um dotado de sensibilidade que ele chama "nos dando a chave" de VER A TERRA DO CÉU.
Vicente Cecim pode ser entendido de modo mais livre do que os outros do seu tempo que tentaram fazer Cinema, senão de modo mais evidente e mais claro, com um Cinema mudo de uma extrema complexidade na sua expressão. Mais do que imagem-palavra, miragens. Através da miração do olhar e do pensamento do cineasta atingir o intelecto-coração do espectador num processo alquímico de revelação transformando a massa cinza do cérebro em massa de verdade e transubstanciação do espírito. O conhecimento visionário, substitui a compreensão literária do texto, a compreensão imagética do filme, a projeção na câmera obscura que atravessa o Olho que agora não vê, vê-se e vive-se no que sente. O olho humano é uma imagem do Universo. O branco do olho corresponde ao oceano de mistério, que rodeia o universo por todos os lados . ANDARA é o ponto central de tudo, a partir do qual se torna visível o aspecto do universo inteiro.
Para Vicente Cecim, não lhe agrada a rotação do girar, girar, girar, filmar, filmar, filmar com uma órbita rotineira. Nesse processo, misterioso e caótico, simples e violento de interpretar as coisas que não lhe incomodam mais, em que os opostos se encontram ainda in-conciliáveis, num conflito pacífico-violento, de ver e ser transformado progressivamente num estado de libertação de harmonia perfeita, a Pedra Filosofal.

"- Agora, abrir os olhos. Agora, começar a sonhar o sonho de ver como somos vistos". VFC.

"Fazer um filme foi e sempre será um sonho, em qualquer circunstância: antes de realizar o filme, é o sonho de fazê-lo, e, depois de ele pronto, é o convite ao sonhar se manifestando plenamente. Naqueles anos, o super-8 foi para nós o que hoje é a facilidade do vídeo. Equivalia, e equivale, a ter na mão um lápis e algumas folhas de papel. Então, escrevemos, com imagens ou com palavras. Com isso se eliminava, e se elimina, ou atenua muito, o impasse, melhor dizer: o bloqueio que o dinheiro representa" .
 
 "VFC queria olhar, ver e mostrar a vida como os seus olhos e o da câmera conseguisse captar a dimensão oculta na realidade visível. E por isso KinemAndara é o Cinema do Invisível."
 
"O Cinema é o Olho que tudo vê e tudo mostra. Essa foi e será a sua essencialidade em qualquer época, qualquer tempo. Atualmente, quando parece que todos estamos vendo tudo, o mundo inteiro e o que se passa nele, acabamos não percebendo que há muito mais oculto do que de fato revelado. A comunicação de massa mistifica o Real, ilude o Homem. É manipulada conforme interesses freqüentemente sujos e suicidas para a nossa espécie. A invasão do Iraque pela América de Bush é um exemplo brutal. Há tantos. Nestes tempos que estamos vivendo, o Cinema deve assumir, com enorme responsabilidade, o desafio que Berkeley, citado acima, nos faz, e que eu entendo assim: - Dar a perceber a Realidade submersa no cristal escuro das imagens que os engenhos e maquinações das comunicações de massa, agora, nos ocultam". VFC

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